jueves, 19 de enero de 2017

Mais um carnaval. A bateria estava se formando quando ele chegou, abundantes cabelos e barbas. Eu já tinha o meu instrumento levantado, mas mesmo assim pude corresponder ao seu abraço de cumprimento, mais longo e caloroso do que eu esperava. - Você está lindo com esse cabelo e essa barba. O ensaio começou e não fiquei perto dele quando a bateria se formou, eu poderia ter pedido a alguém para trocar de lugar, mas não o fiz. Talvez tivesse medo, inconscientemente, do que podia acontecer naquele dia. No intervalo ele perguntou-me sobre as minhas férias, queria saber de mim e passou a mão no meu cabelo. Passou a mão no meu cabelo! O que está fazendo? Nunca me tocou assim. Entre cervejas, baseados e estranhamentos nem pudemos conversar devidamente. O ensaio ia recomeçar e ele fez uma carícia nas minhas costas. Este rapaz está estranho. Será que alguma coisa mudou? Conhecíamo-nos desde o carnaval passado, quando nos juntávamos para comentar o quão diferentes éramos de toda aquela gente da bateria. Ainda bem que está você aqui. Apesar dos dez anos diferença de idade – eu mais velha – quis comê-lo com manteiga desde a primeira conversa, a primeira cerveja, o primeiro sorriso cúmplice. Tão lindo! Mas ele tinha sempre as suas meninas, os seus rolos e os seus “poréns”; acabamos ficando amigos. Até cheguei a pensar que aquilo não passava de ilusão. Afinal não temos tanto assim em comum. Decidi esquecer a atração platônica e aceitar a amizade, muito esporádica, meio incompleta, mas ainda assim, uma amizade consistente. Foi-se um ano até aquele momento em que ele passou a mão no meu cabelo. Por quê? Um toque carinhoso e tudo muda? A partir daí, muita cerveja e muita paquera. Oh, por que tanta cerveja?! Ensaio vai, ensaio vem e finalmente fiquei perto dele na formação, de costas, na sua frente. E a cada pancada que ele dava no surdo, o meu corpo vibrava de desejo e expectativa. De vez em quando era inevitável olhar para trás, e ele dava um piscadela que me fazia perder o ritmo, esquecer a batida e gritar para dentro. Não acredito que isso esteja acontecendo! - Hoje eu quero ficar bêbado. - Eu também. A partir daí foram inúmeras cervejas compartilhadas. Depois de algumas horas, o ensaio acabou e começou a roda de samba. Baixei o meu instrumento e me dediquei a alimentá-lo de cerveja e a abafar o som do seu surdo a cada batida, enquanto ele sustinha a garrafa. Não bate na minha mão! Quando ele finalmente baixou o seu instrumento, perguntei-lhe: - E então, o que você tem para hoje? - Como assim? - Você sempre tem algum compromisso, qual é o de hoje? - Tenho um encontro com uma menina. Gelo. Como pode ser que depois de toda a tarde de toques e piscadelas inéditas e inesperadas ele poder ir embora assim, para ter com outra menina?! - Mas você não me deu nem cinco minutos! Então eu disse-lhe que se fosse assim, que se fosse para me provocar todo o dia e depois ir embora ter com outra menina, deveríamos então estabelecer um código de toque. Você não pode me tocar desse jeito, não é justo, não sou feita de ferro. - Posso ser sincero, muito sincero? - Deve. - Quero dar com o meu pau na sua cara! Gargalhei. Gargalhei porque no fundo adorei o que ele disse, esperei por isso durante tanto tempo que já nem acreditava que pudesse acontecer. No entanto, respondi-lhe que como feminista não poderia aceitar o gesto de violência. - Mas mesmo assim, quero comer você com manteiga! - São duas formas de dizer a mesma coisa. E então foram mais toques, discretos, porém perturbadores, e mais provocações até que ele disse vamos dançar, mesmo não havendo ninguém mais dançando. Disse-lhe que não sabia dançar e que na minha cabeça estava sempre contando: um, dois, três, um, dois, três, para não perder o passo. Tentamos e constatamos a minha falta de talento. Risos. - Não acredito que você vai embora. - Tenho que ir. - Ah se eu tivesse coragem! E tive, tirei de mim o que precisava para roubar-lhe um beijo. Correspondido, com gosto de proibido, de cerveja e de embriaguez. - Tenho mesmo que ir. E foi-se. Sem olhar para trás, sem explicar por que e sem me dar nem cinco minutos. Cinco minutos para lhe dizer que... Tarde demais. Mais uma bebedeira. E outro coração estilhaçado no anonimato de mais um carnaval.

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